sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Lar




Deixei a frase solta no meio da mesa da escrivaninha. Quero me separar. Chegando do trabalho, minha esposa me procuro. Eu estava em silêncio no quintal mas ouvia sua voz ecoando pelos cômodos.

No escritório, a tela em branco com o cursor piscando após a frase. Limpa, livre, em destaque no monitor. Ela veio voando pelo corredor, a esposa. Olhos chorosos. Eu disse:

Aldir Blanc e João Bosco, Incompatibilidade de Gênios – sabendo que havia deixado a frase na tela para desenvolver uma ideia que me surgiu ouvindo uma versão de Caetano. Um homem que anseia terminar uma relação. Estava no quintal para pensar se o argumento tinha enredo.

Sou casado há um ano e meio, namorei por quatro, portanto, há quase seis anos que Fernanda me conhece. Ainda não se acostumou a ver minhas frases jogadas pela casa louvando musas inexistências, desconstruindo histórias sadias, maldizendo gerações anteriores de família que minha ideia inventara.

Parte de meu primeiro aprendizado com a leitura, a literatura graúda, foi com romances policiais. As narrativas noir com detetives na margem entre a moral e a corrupção e mulheres mais fatais que uma caixa de dinamite. O resultado é que, sempre que posso, descrevo nádegas em meus textos. É um vício bobo, para me fazer rir. Normalmente no corte final retiro a bunda dissonante por não caber no texto. Mas Nanda sempre me olha de esguelha quando, ao ler as narrativas de antemão, encontrar minhas bundas rondando um falso desejo.

São apenas nádegas – digo a ela – de ninguém específico – nádegas são expressivas, eu penso – não descrevo as suas porque são só minhas – ela sorri com o elogio despudorado. Seis anos de relacionamento e ela ainda imagina que eu possa incorporar um de meus personagens. Decidida, de uma hora para outra, deixa-la. E, pior, avisando-a de uma maneira brusca, insensível e irritantemente cênica. Gostaria de brincar dizendo que, se eu realmente a abandonasse, utilizaria a tática de sair para comprar cigarros. Mas ela provavelmente se irritaria e ficaria emburrada no sofá o resto da noite.

Levanto da cadeira e seguro suas mãos. Ela precisa desse contado. Ela sabe que tudo que há dentro daquele escritório é material de trabalho. Lá sou um homem inescrupuloso  um imoral, um assassino, um pervertido, um monge, uma mulher, uma mulher devassa com nádegas que param o transito, uma criança que vende trocados no sinal, o gay enrustido que só descobre aos quarenta que se engano a vida toda e tem uma epifania.

Mas ela precisa de uma confirmação.

Aldir Blanc e João Bosco, Incompatibilidade de Gênios. Estava ouvindo essa música ontem no disco do Caetano, não se lembra? – Ela precisa saber que aquelas palavras estão dentro do campo da ficção – isso me deu a ideia de um homem que quer deixar a esposa e começa um relato assim, sem rodeios, agressivo.

Os olhos voltam ao normal. Ela sabe. Ela se lembra. Mas o impacto causou susto. Por um lado, é positivo. Significa que o conto tem potencial. Resta-me desenvolve-lo por completo. Então, ela me dá um beijo na boca, me dá as costas e vai para a cozinha.

Odeio Caetano – me diz, de longe.

Enquanto aumento a voz, cantando você me deixa a rua deserta, quando atravessa e não olha para trás. E a ouço sorrindo.

29 de janeiro de 2013

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