quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Perpendiculares



Em 2003, perdi um amor ou ele me perdia. Faço esta afirmação pelo fato dela ser um ponto de partida. Anos depois, recordei este fato em um texto de qualidade literária duvidosa com certo sentimento genuíno.

Nele expunha duas situações em uma mesma linha de raciocínio. A história do amor perdido era uma exemplificação para explicar uma tese.

Não me recordo em que momento decidi desistir daquele amor. Talvez tenha pensado em prós e contras, feito uma lista careta e, matematicamente, escolhido romper os laços. O elemento mais provável, porém, foi que medi meu sofrimento em relação ao amor e o resultado não foi positivo. Preferi sair ferido com honra em uma batalha perdida do que lutar por algo que eu não conseguiria vencer. A história da vida de Sun Tzu.

A narrativa em questão, do texto sem qualidades, iniciava-se com uma afirmação. A derrota dita com coragem: eu abdico. Mais do que lavar as mãos, eu assumia o retorno dos soltados a terra natal. Nada havia a fazer exceto deixar as mãos abertas, como chagas, para que o sangue – ou o que estive dentro de mim, na época – escorresse.

O paralelo era estabelecido entre a história de amor quebrada com outra história que tinham como relação a desistência. Na época, a idéia parecia interessante, hoje falta-me a lembrança do que me motivou a escrever de fato. Porém, sempre ao me recordar de um fracasso, lembro-me do texto e de suas correlações. Uma linha de falhas e desistências que se formam, como um quadro, para de vez em quando, admirar e se incomodar, como diria Leminski, como se um homem com uma dor fosse melhor do que se é.

Recentemente tenho escrito indiretamente sobre envelhecimento e maturidade. Talvez por estar em transições como estas. O curioso de escrever é poder, após um tempo, olhar para suas narrativas com a sensação de que ganharam vida própria. Ao mesmo tempo que, indiretamente, elas acompanham as mudanças que direcionei minha vida. Os reflexos no papel me lembram de história na vida real.

Com mais idade compreendi que não há erro na derrota. A perda é um equilíbrio da vítória. Com essa afirmação esbarro no senso comum, mas é inevitável, é um bom raciocínio.

Assumir falhas não me fazem diminuto. Me deixam espiritualmente com o prazer de ser humano. Fracassar de milhões de maneiras diferentes. Chorar mesmo que no escuro. Mesmo que no chuveiro sentado no chão soluçando o mais silenciosamente possível para não ferir minha masculinidade que acredita que homens não choram.

Então, mais uma vez me vi diante de minha vida e suas situações. Como se tivesse olhares ansiosos aguardando minhas decisões. Cheguei a imaginar uma luz sobre minha cabeça, fazendo-me transpirar mais que o normal, mas era somente uma cena. Um desvio involuntário pelo medo de afirmar que novamente eu abdicava. Abdicava das histórias, declinava qualquer acontecimento futuro.

Não há alegria na velocidade se provoca grilhões. Diante disso, eu abdiquei  Com a sensação de um traço bem delineado. De um trabalho bem feito, se posso menear minha conduta como um trabalho propriamente. Não digo que tenho as mãos atadas. Elas estão livres. É por isso mesmo que abdiquei. Dando mais um passo, outro seguimento, as histórias de minhas desistências. Livre e sorrindo por dentro. Minha fidelidade ainda mantinha-se em mim.

28 de fevereiro de 2013

sábado, 23 de fevereiro de 2013

O Velho



Quando o cachorro vira lata do velho Johnson foi encontrado enforcado em uma das árvores da pequena cidade, ele retirou da parede o velho trabuco de seu avô e foi a casa mais próxima, a procura de pólvora para armá-lo.

Fundador da cidade de Maria das Graças, o velho nunca teve nenhum inimigo. Há muito tempo tinha se afastado da parte americana da família que fincou-se no país como escravocratas ricos na época da colonização. A única herança que mantinha de sua origem, além da arma, era um sotaque puxado que os quase setenta anos de brasilidade não retiraram de sua língua.

Dizem que Johnson saiu de casa com as mesmas roupas surradas que usava cotidianamente. Com a arma empunhada na mão direita, dizia aos moradores que pegaria o culpado, soltando palavras agressivas a, mais ou menos, sete ou seis palavras.

Conhecido por ser um homem fechado, o ancião chorou ajoelhado ao ver a figura canina com a corda de varal no pescoço, repleta de nós que não conhecia e levemente movimentando-se com o vento.

Enquanto curiosos passavam no local, um dos moradores acionou a polícia local que, além de dar um leve assobio ao ver o cão e fazer anotações, não pode fazer muito até dias depois quando Johnson, sujo e com marcas de sangue na roupa, se entregou a polícia após matar o jovem que matara seu animal.

Com o falecimento da esposa, o velho tornou-se recluso da própria cidade que fundou. O que aumentava o status de figura lendária em Maria das Graças. Contam que o cão foi encontrado dias depois do falecimento da esposa. De luto, de um naco de lanche ao animal e se apegou.

Durante aproximadamente seis anos aquele cachorro foi o companheiro de Johnson. Ele tinha a certeza de que seria enterrado pelo animal, de alguma maneira. Mas estava amarrado à arvore enquanto, em prantos, o velho lembrava que a ração deixada no pequeno prato de metal pela manhã estava intocada.

Johnson não hesitou em se entregar a polícia. Detalhou ao delegado os pormenores de sua ação que se consistiu em, ao falhar da pólvora no trabuco, virar o instrumento ao contrário e, com a força quase septuagenária de alguém que perde sua única ligação sensível com outro ser, arremeter algumas vezes, que não soube precisar, na cabeça de Jonas Bezerra, um dos poucos jovens do local que, por ter ido a capital três vezes, sentia-se um cosmopolita.

Jonas nunca foi ouvido pelo delegado. Dissera ao velho, minutos antes de morrer, que tentou expor sua valentia aos amigos. A supremacia descomunal perante outro animal, o cão, dócil e indefeso. Conforme realizava a ação, o grupo de quatro amigos sentiu-se acuado, principalmente quando, ainda com as cordas nas mãos, ele ameaçou o menor do bando, enlaçando o fio em seu pescoço.

A morte do cachorro seguida pela de Jonas foi o primeiro e segundo escândalo que a cidade assistiu. Foi a passagem do deslumbramento da inocência para a consciência de que todo ser humano está predisposto a fazer o mal, bem como, por amor aos seus entes, capazes de romper as leis mais cristãs. O cachorro, Jonas e o velho eram início, meio e fim de um mesmo ciclo. Se tornaram, com o passar do tempo, não só uma espécie de história lendária, e o princípio violento da cidade, como uma fábula moral que ia além da idéia agressão que gera agressão.

Embora tentassem os conservadores, o fundador da cidade nunca conseguiu ser odiado. Mas também não fora perdoado. Em sua homenagem, Maria das Graças ganhou no século seguinte o seu nome. Registrado por um prefeito que, envergonhado de não falar inglês e não saber soletrar o nome Johnson, batizou a cidade como Americano, colocando a foto do velho, uma das únicas encontradas em sua casa, em uma ampliação mal feita em na sede da prefeitura.

19 de dezembro de 2012

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Lar




Deixei a frase solta no meio da mesa da escrivaninha. Quero me separar. Chegando do trabalho, minha esposa me procuro. Eu estava em silêncio no quintal mas ouvia sua voz ecoando pelos cômodos.

No escritório, a tela em branco com o cursor piscando após a frase. Limpa, livre, em destaque no monitor. Ela veio voando pelo corredor, a esposa. Olhos chorosos. Eu disse:

Aldir Blanc e João Bosco, Incompatibilidade de Gênios – sabendo que havia deixado a frase na tela para desenvolver uma ideia que me surgiu ouvindo uma versão de Caetano. Um homem que anseia terminar uma relação. Estava no quintal para pensar se o argumento tinha enredo.

Sou casado há um ano e meio, namorei por quatro, portanto, há quase seis anos que Fernanda me conhece. Ainda não se acostumou a ver minhas frases jogadas pela casa louvando musas inexistências, desconstruindo histórias sadias, maldizendo gerações anteriores de família que minha ideia inventara.

Parte de meu primeiro aprendizado com a leitura, a literatura graúda, foi com romances policiais. As narrativas noir com detetives na margem entre a moral e a corrupção e mulheres mais fatais que uma caixa de dinamite. O resultado é que, sempre que posso, descrevo nádegas em meus textos. É um vício bobo, para me fazer rir. Normalmente no corte final retiro a bunda dissonante por não caber no texto. Mas Nanda sempre me olha de esguelha quando, ao ler as narrativas de antemão, encontrar minhas bundas rondando um falso desejo.

São apenas nádegas – digo a ela – de ninguém específico – nádegas são expressivas, eu penso – não descrevo as suas porque são só minhas – ela sorri com o elogio despudorado. Seis anos de relacionamento e ela ainda imagina que eu possa incorporar um de meus personagens. Decidida, de uma hora para outra, deixa-la. E, pior, avisando-a de uma maneira brusca, insensível e irritantemente cênica. Gostaria de brincar dizendo que, se eu realmente a abandonasse, utilizaria a tática de sair para comprar cigarros. Mas ela provavelmente se irritaria e ficaria emburrada no sofá o resto da noite.

Levanto da cadeira e seguro suas mãos. Ela precisa desse contado. Ela sabe que tudo que há dentro daquele escritório é material de trabalho. Lá sou um homem inescrupuloso  um imoral, um assassino, um pervertido, um monge, uma mulher, uma mulher devassa com nádegas que param o transito, uma criança que vende trocados no sinal, o gay enrustido que só descobre aos quarenta que se engano a vida toda e tem uma epifania.

Mas ela precisa de uma confirmação.

Aldir Blanc e João Bosco, Incompatibilidade de Gênios. Estava ouvindo essa música ontem no disco do Caetano, não se lembra? – Ela precisa saber que aquelas palavras estão dentro do campo da ficção – isso me deu a ideia de um homem que quer deixar a esposa e começa um relato assim, sem rodeios, agressivo.

Os olhos voltam ao normal. Ela sabe. Ela se lembra. Mas o impacto causou susto. Por um lado, é positivo. Significa que o conto tem potencial. Resta-me desenvolve-lo por completo. Então, ela me dá um beijo na boca, me dá as costas e vai para a cozinha.

Odeio Caetano – me diz, de longe.

Enquanto aumento a voz, cantando você me deixa a rua deserta, quando atravessa e não olha para trás. E a ouço sorrindo.

29 de janeiro de 2013