quarta-feira, 22 de maio de 2013

A Garota Que Não Conhecia o Guia


Para Karina Audi


Marcaram o primeiro encontro nas vésperas das férias escolares. Quando recorda a história, não se lembra o que vestiu, tamanho o nervosismo. Lembra que se olhou uma última vez no espelho após ela tocar o interfone lhe dizendo: oi, sou eu. Frase que o fez sorrir pela maneira como ela se anunciava. Eu, quem?, pensou. Mas sabia que era a garota, não esperava mais ninguém.

Percebia que embora a sequência dos acontecimentos fosse evidente, não saberia descrevê-los por completo. Tudo que via era pequenos flashes: o caminho até a sorveteria em que brincou com o sobrenome dela, o mesmo de uma loja local. O fio de conversa que conseguiram manter durante todo o trajeto, não dando espaço ao silêncio esmagador. A conversa na sorveteria sobre filmes, literatura, seriados e todo o blá blá blá de um nerd que sabia o nome de toda a equipe do homem morcego e falas completas do primeiro Duro de Matar.

Ele gostava da maneira como ela lhe ouvia e, atenta aos fatos, pontuava suas opiniões em meio a suas frases repleta de referências. Frases que hoje lhe fazem pensar, deus, como ela não saiu correndo dali? Imagina a cena pelo olhos dela, lhe perguntando o que a fez permanecer ali.

Quando ela lhe disse, não, não li, em resposta à pergunta você já leu o Guia do Mochileiro das Galáxias?, ele soltou o primeiro olhar enviesado da noite. Era um simulacro incrédulo de raiva para fazê-la rir. Subiu seu tom de voz perguntando-lhe como não e versou por cinco minutos aproximados sobre como o livro de Douglas Adams poderia ser considerada a bíblia sagrada. 

A conversa prosseguiu após o sorvete e depois do aviso da dona do estabelecimento de que fechariam em quinze minutos. Foram caminhando até suas casas. Ao chegar na frente de seu prédio, hesitou. Perguntou se poderia acompanhá-la até sua casa. Em parte, prezando a segurança, em outra porque não gostaria de abandoná-la. Pediu que aguardasse um momento e subiu para seu apartamento. Distraiu-se no espelho, ajeitando um fio de cabelo que insistia em seu rosto. Prestes a trancar a porta, lembrou-se do porquê fora a casa. Foi até a estante, retirou um de seus livros com cuidado, colocando-o na mochila. E saiu.

Passaram a noite em claro conversando e trocando beijos. Amanhecia e, naquele mesmo dia, eles voltariam para suas cidades para as férias. Sem querer, guardavam uma surpresa um para o outro. Ela lhe deu uma foto, para você lembrar de mim. Ele, abrindo a mochila, retirou cuidadosamente seu exemplar do Guia do Mochileiro das Galáxias e entregou a ela. Para reparar esse terrível erro em sua conduta nerd, disse.

Se beijaram e se despediram. Tanto fazia se haveria sol ou chuva naquele dia.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Around The Clock



Mais uma manhã comum, de uma quarta feira comum, de uma reunião semanal costumeira para balanço da semana anterior e eventuais análises de casos problemáticos na empresa. 

Eram seis, em uma mesa circular, com seus cafés recém saídos da máquina de expresso e os rostos ainda projetados no breve adormecer da noite anterior. Mesmo que todos, com a exceção do chefe, tentassem esconder a sonolência com maquiagem ou roupas alinhadas.

Ainda atrelada aos seus pensamentos, Camila fitava o rosto do chefe sem discernir ao certo suas palavras, pronunciadas em uma cadência longa e em tom baixo que mais relaxava-a, aproximando-se da vontade de apoiar os braços e a cabeça ali mesmo na mesa, do que lhe despertava. Levantou-se para retirar mais uma xícara de café da máquina.

O barulho dos grãos sendo moídos pelo processador incomodaram o chefe que interrompeu a fala fazendo a mulher enrubescer. Ela lhe deu um sorriso com todos os dentes, como quem pede desculpa, e voltou para a mesa. Quando seu despertar aconteceu.

Sentada na cadeira ao seu lado, Luciana, sua colega, apoiou-se em uma das mãos, direcionando a cabeça para o chefe. Seu punho direito, até então escondido pela manga cumprida, se revelou. Fazendo os olhos de Camila brilharem.

Era feito de metal em entalhes dourados e prateados. Aro pequeno, delicado, que a fez lembrar doces de confeitaria que, além de saborosos, são um deleite aos olhos. Mas o que lhe deu um arrepio em todo corpo foi o nome estampado no centro do marcador.

Era o relógio que Camila desejava há meses mas que não podia comprar por causa da dívida sempre infinda dos cartões de créditos. E lá estava ele, brilhante, admirável, lindo, no pulso de outra mulher que não ela. 

Cada movimento de Luciana era acompanhado pelos olhos ternos de Camila. Estava apaixonada. Durante tanto tempo havia desejado o relógio, mas pela primeira vez o via a olhos nus e ele se revelava mais do que perfeito do que as imagens que via nas revistas ou nas lojas virtuais.

O tempo se arrastou na hora seguinte e Camila pouco prestou atenção na reunião. Pensava na mudança que sua vida teria ao tê-lo em seu pulso, via-se ganhando uma promoção, escolhendo roupas que combinassem com o adorno mas, ao voltar a realidade, sabia que ainda não seria aquele mês que poderia arriscar uma prestação a longo prazo.

Quando a reunião acabou, ela olhou para o relógio da colega como se despedisse de uma paixão platônica. Deu um longo suspiro e, ao olhar em seus pulsos, riu ao ver apenas uma fita vermelha presa em um deles.

Aproveitou a hora do almoço para descer ao centro da cidade. Olhou as lojas de roupas como de costume e, em uma relojoaria, se encantou com o mesmo relógio visto anteriormente. Ali, com o reflexo do vidro, parecia mais pálido. Se eu tivesse dinheiro, pensou. 

Ao retornar para o trabalho, parou na banca de camelô que visitava quase todos os dias. Ocupava uma longa parede de uma loja desativada e a variedade vasta ia desde filmes piratas, bijouterias, até óculos de sol e relógios de grandes marcas a preços módicos que o vendedor garantia a originalidade.

E ali o viu. Entre outras marcas, sua pulseira de metal em prata e dourado, aro pequeno como um doce bem confeitado. Parecia tão real, idêntico ao que ela viu no pulso da colega que, quando percebeu, já estava com ele nas mãos, posando para um pequeno espelho que o vendedor tinha na loja improvisada. Resolveu leva-lo por trinta e cinco reais.

Colocou-o no pulso como se trajasse uma das joias da rainha, nunca pareceu tão altiva no trabalho, nunca tão carinhosa em saudar a todos erguendo a mão para um rápido aceno. Desejava que todos observassem a nova conquista.

Mas Camila ainda sentia-se entristecida. Estava com o relógio há quatro horas e tudo estava igual. Ninguém lhe perguntara a respeito. No fim do expediente, o chefe, despedindo-se, perguntou sobre o adorno.

Sentiu outro arrepio com a mesma intensidade daquela da manhã. Era o momento de mostrar ao chefe o requinte,  beleza, e de como ela, elegante, merecia muito mais na empresa.

- É muito bonito sim – lhe disse – mas a Luciana não tem um igual?

Foi por pouco, mas seu sorriso quase se desfez.

- Tem sim, mas – e aproximou-se brevemente dele, diminuindo a voz – o dela é falso, desses comprados em camelô. - o chefe assentiu, lhe deu aceno e foi caminhando para o estacionamento.

Ela sabia que havia contado uma mentira. Mas era uma mentira tão pequena que não significava nada. Não haveria de significar. Foi Luciana que se atreveu a comprar o relógio antes dela. Essa era a verdade. E, pensava, aquela sonsa bem que mereceu

14 de Maio de 2013

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Austeriana (3): helicoidal

 


Leia: Austeriana (1): escritor, personagem, papel
Austeriana (2): o texto de Charlote

As folhas ainda estavam em minhas mãos enquanto olhava fixamente o papel em vez de encarar Charlote. Era minha maneira de refletir a respeito do que li sem que ela percebesse ativamente meus pensamentos. Embora a narrativa fosse centrada nela como pessoa e personagem, me reconheci em algumas linhas, calculando que esta era sua sensação ao se reconhecer nas minhas.

- Eu pareço assim tão, tão... – ela começou a rir e meneou a cabeça – idiota?

Mas me parecia mais do que isso. Talvez eu nunca tivesse compreendido totalmente como havia, naquele momento, a completude do autor, personagem, leitor. E de como as histórias poderiam se moldar de uma maneira que estes patamares, em tese separados, se tornassem um novelo enevoado.

- Normalmente, sim. Acho que tem a ver com a concepção de se sentir diferente por escrever. – ela mesma se atropelou nas palavras – eu sei o que vai dizer, nem todo mundo que escreve é um escritor, mas vou te considerar como um.

Depois de anos escrevendo, era como se eu não soubesse ainda o sentido total por trás das palavras. Não a busca sistemática por encontrar-se no texto ou buscar, a partir dele, uma razão universal, mas a motivação escondida nas escrituras. Ao menos de minhas narrativas.

Charlote continuava apreensiva. Procurei selecionar minhas palavras com cuidado.

- Você tem medo de ser uma personagem?

- Talvez. Acho que as lembranças tornam-se mais sensíveis com elas. Ou posso parecer exagerada, talvez tenha exagerado no texto também.

- Não. A equação muda de escritor para outro, mas o resultado é o mesmo. Projeção, imaginação, trabalho árduo. Se você dissecar o texto, a composição parece fácil. Mas são apenas personagens vivendo uma história, Charlote. Há quem sinta falta deles quando o final do livro se aproxima, porém, por mais que estas personagens me inspirem, continuam sendo personagens.

- ...

- Lhe falta sempre alguma coisa. A completude, o erro, o paladar. Falta a demência humana.

- E se forem um desses personagens românticos, eles não deveriam ser dementes também?

- Acho que se torna invariável. Admiro mais as personagens que os humanos por sua lineariedade. Atingem seus objetivos mesmo com grande dificuldade. São criadas para irem de um lado para outro em uma história e são bem sucedidas, enquanto na vida real tudo é mais falho. Gosto do entusiasmo das personagens.

- ...

- E parte da força de um escritor vem de uma superioridade de se achar no direito de conhecer suas personagens ou de saber compreender uma parcela da alma humana. Gosto de acreditar que te conheço, embora saiba que não. Mesmo que especule que conheço a personagem e que a admire, isso é um engano. O reflexo é ela, não você. Mas, às vezes, para o leitor, isso não é claro, por isso as personagens criam vida.

- E existe outra Charlote por aí, da mesma maneira que existo. Mas ela não sabe sobre mim.

- É um tanto metafísico, mas pode se pensar por aí. Mas eu dizia que nem sempre um texto demonstra suas intenções iniciais. A criação primordial do autor pode se modificar. Se você lesse um “eu te amo” em uma narrativa, poderia imaginar que fosse uma declaração apaixonada se essa for sua interpretação, ou talvez seja a tendência momentânea de seu entusiasmo. Outro, frustrado, poderia achar uma ironia. Metade da narrativa está escondida em quem lê.

Não havia mais o que lhe dizer a respeito. Era este um dos conceitos da própria composição literária e, somente quando me tornei uma personagem, pude compreender. A urgência de histórias que precisam ser despejadas no papel, o desespero que muitos o fazem e o mesmo desespero que estas palavras são devoradas.

- Não se preocupe com isso, Charlote. Você, como personagem, será confundida um milhão de vezes com outras pessoas. O reflexo não é funcional como um espelho. É, continuando nessa ideia de um jogo de luz e sombras, uma imagem à meia luz. Se reconhecer em uma personagem é o mesmo que caminhar em uma noite escura. Às vezes passam vultos por nós e, até sabermos se conhecemos ou não alguém que passa ao nosso lado, é necessário um prazo de análise e compreensão. Nem sempre a Charlote personagem vai ser você mesma. Vai se transmutar entre outras pessoas que vão jurar que a personagem nasceu para ela.

- Eu gosto da personagem como eu gosto de mim, de alguma maneira.

- Agradeço pela sua boa vontade. Você é muito gentil.

Charlote e eu conversaríamos sobre literatura mais algumas vezes. Mesmo que tentássemos evitar a ideia romântica, debruçaríamos sobre o argumento como se fosse um mistério. Sabíamos que, no fundo, autores não são tão imortais quanto suas obras. E talvez por isso desejássemos nos transformar também em personagens. Para, mesmo que de uma maneira ínfima, viver à beira da morte sem nunca perecer propriamente.