quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A Mulher no Café



Há certa poesia na bela mulher que toma café, tarde da noite, no último dia do ano. Suas roupas bem arrumadas me fazem pressupor que a noite fora um fracasso, seus olhos distantes não me convidam para chegar perto. Mesmo assim, sento ao seu lado.

Escolho o mesmo que a moça, um café para fechar o ano desceria bem, mesmo com um dia ainda quente lá fora. Eu olho para a vitrine de tortas e pergunto o recheio para uma das balconistas. Noto que, pela primeira vez, a moça me olha. Enquanto a balconista caminha até o outro lado, consultado, aparentemente sua superior, a moça me chama com os olhos. “Elas estão ai desde o início da tarde, se eu fosse você ficaria apenas no café”. E isso é o suficiente para que eu deixe um sorriso no rosto e sente ao seu lado, levemente à vontade.

“Deixe me adivinhar, viciada em cafeína?” e ganho um sorriso descontraído e seu corpo levemente voltado para o meu. “É tão óbvio assim?”, ela pergunta, e eu concordo com a cabeça, e completo, “principalmente para uma moça sozinha, no último dia do ano, tomando café como se fosse a melhor coisa que se pode fazer na vida”.

Ela suspira e responde-me dizendo que são apenas datas de ano, “mas que podem significar muito”, replico. “E por que?”, ela quer saber. Fico em silêncio. Observando que seu semblante relaxado no braço apoiado no balcão espera uma resposta. Hesito, mas acabo por dizer.

“Há certa poesia em uma bela mulher que toma café, tarde da noite, no último dia do ano”. Seus olhos parecem intrigados e ela pergunta-me, novamente, o porquê dessa afirmação. “Não sei bem ao certo lhe responder. É como se fosse um último lamento. Uma última dose dedicada a um ano que não foi nem ruim, nem bom, apenas diferente. Um espiral de acontecimentos que ainda é difícil de lidar. Mesmo que seja apenas uma data, sua solidão chega a parecer levemente sedutora”.

Seu rosto fica corado e ela agradece meu elogio, tímida. Talvez tenha falado demais e pressuposto demais sobre uma estranha que mal conheço. Deveria ter começado pelo princípio mais comum. “Desculpe-me, mas, qual é seu nome?”.

“Depois de uma estranha que toma café no último dia do ano para esquecer seu ano ruim, acho que você pode me chamar do que quiser. Ou se sua percepção é tão boa assim, arrisque-se”. E rio de seu desafio. “Qual a graça”, pergunta. “Foi tudo o que fiz esse ano, enfrentar desafios”, respondo.

Meu café chega fumegando em sua xícara, me concentro em adoçá-lo ao meu gosto, muito açúcar para pouco café. Ela permanece em silêncio observando meu ritual. Duas, três colheres. Uma, duas experimentadas. Agora sim doce como gosto. Quando termino as provas, ela fixamente está me encarando.

Ergo as sobrancelhas, como quem diz em silêncio se devo dizer algo. “E meu nome?”, ela pergunta. “Depende”, respondo, “seu nome pode ser um conjunto de variáveis arriscadas”. “Tente”, ela pergunta, há prazer em seus olhos pela dúvida.

“Eu poderia te chamar de M. sobrenome Mendonça, se você fosse o tipo de mulher que já foi enganada por um homem que depois se apaixonou por você. Se seus prazeres estão mais a flor de sua pele, D. seria seu nome mais propício. Vivendo um leve flerte proibido até morrer de culpa e voltar ajoelhada ao seu amor, mesmo que ele não saiba de nenhum dos seus suplícios.

"Por outro lado, você sozinha nessa noite me lembra E., e, assim, você seria uma doce mulher frágil, que viveu demais com um único amante e agora acredita que sua vida, de certa maneira, passou em vão. Que essas rugas não foram bem vividas. Você parece ser forte, do tipo que pode suportar ouvir explosões passionais sem fugir, portanto seu nome, definitivamente, não é C. Acho que poderia inferir alguns outros nomes, mas eles me fogem da memória. Alguns deixei escapar com o tempo ou são corrosivos demais para se lembrarem e alcunharem outra mulher."

Ela permaneceu em silêncio o tempo suficiente para que eu saboreasse meu café, enquanto ela, como imaginei, sorvia minhas palavras. “Você é um homem observador, talvez tenha acertado sobre alguns aspectos de mim, no meio de suas lembranças”. Assenti com a xícara de café, pedindo outro para a balconista e oferecendo um a moça.

E elas, quem são?”, me perguntou. Hesitei. Olhei ao chão, a um grupo de pessoas que passaram lá fora e voltei a encarar seus olhos. “Matéria prima. Matéria bruta. Doces venenos. Hoje, apenas minhas personagens. Envoltas em fotografias que as vezes encontro em matérias antigos e que, por alguns minutos, me fazem refletir que tipo de homem fui”. Foi a vez dela de concordar com a cabeça.

Você me deixa curiosa, que tipo de homem você é?”. Sorri, repleto de ironia, mas respondi. “Eis a pergunta de um milhão de dólares, dificil de responder. Mas, me diga, mulher na última noite do ano, trajando belas roupas pretas que toma café em um lugar nem tão chique nem tão vulgar, o que isso quer dizer?”.

Ela riu. Foi um riso verdadeiro, explosivo. “Simboliza minha frustração com esse ano”. Lamentei, e tentei expressar isso em meu rosto. Perguntei em seguida, “pior final de ano?”. “Não”, me respondeu, “já tive piores”.

A movimentação do café estava abaixando aos poucos. As balconistas lavavam as poucas xícaras que eram usadas e, exceto pelas luzes do balcão, a outra sessão de mesas já estava apagada.

Façamos o seguinte, estranha. Eu tenho um bom café, uma casa confortável, e uma bela sobremesa que minha mãe me deixou, ainda no natal, em que mal toquei. Posso te convida-la a continuar essa conversa em outro lugar?

Ela mexeu naquilo que restava de seu café, como quem está indecisa, deliberando sobre o convite. Insiste, “Vamos, não vai ser pior do que o seu pior final de ano”. E ela torceu o rosto e concordou. “De certa forma você tem razão, mas eu nem sei seu nome”.

E enquanto pagávamos os nossos cafés, deixei a ela meu primeiro enigma, “Depois de um estranho que lhe convida para ver um ano agonizar e o outro nascer, acho que até o final da noite você vai conseguir adivinhar meu nome”.

E saímos do café, onde as luzes imediatamente se apagaram e nossos passos pareciam os únicos destoantes daquelas casas que esperavam ansiosamente uma mudança que nada significava se não mais um número decimal.

Bauru, Quinta Feira, 31 de Dezembro de 2009

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Bebidas Amargas, Noites Negras (Uma Introdução)


Não importa quem somos, mas sempre desejamos ter um espaço só nosso. Nem que seja uma pequena caixa com chave onde podemos guardar os itens que são mais preciosos.

Dizem que um escritor só ganha essa alcunha, de fato, quando é publicado por alguma editora, em algum lugar. Hoje, depois de seis anos me dedicando a prosa, se ainda não sou um, tenho certeza - daquelas sensações que vem bem no estômago - de que meu desejo é ser um. Publicar meus contos, ser lido por desconhecidos, elogiado e criticado.

Minha primeira prosa beirava o ridículo do riso, as últimas parecem ter uma cadência gostosa de se ler. A experiência e a prática contam muito depois de anos.

Durante esses tais anos, tive muitos espaços para publicar meus textos. Ao lado de dois amigos, criei meu primeiro blog coletivo. Depois com mais outros três, outro desses literários coletivos e, com um desses, mais um projeto dessa vez em duo.

Pela ausência de inspiração, o outro blog ainda vive, mas está parado. Minha maré de composições tem me dado força para retomá-lo e, em breve, ele deve voltar a ativa, enquanto o outro da dupla viaja pela Europa. Enquanto isso, fui convidado por um outro amigo, a realizar um projeto novo, em cuja idéia consiste criar uma personagem fixo em diversos textos, dando um desafio a mais para a arte da escrita. Tentando nos dar um esforço para aprendermos ainda mais sobre esse ofício.

Rara as vezes tive um espaço que fosse só meu, minha caixa com chave. Tive um que até hoje tenho muito apreço, mas os textos velhos chocam-se com os textos novos, com outro estilo e parecem não se casar. Assim surgiu essa espaço mais sombrio, Negro e Amargo Blues. Um título extraído de um romance policial que exemplifica de maneira curiosa o tipo de literatura que faço agora.

Uma composição repleta de amargura, decadencia, dolorida como um blues. Que tem seus espaços belos mas que sempre se quebra com a dura realidade e o chão áspero em que tropeço.

Antigamente, eu tinha leitores. Mas eles foram tornando-se amigos, muitos íntimos. E amigos não ligam para o seu trabalho. Quando rompe-se o enigma entre autor e leitor, perde-se a importância de acompanhar sua evolução. Ganhei amigos, sim, mas perdi meu público.

Esse espaço não tem a intenção de ser um lugar amplo para muitos. Mas sim para aqueles poucos que ainda insistem que eu devo registrar minhas narrativas em um espaço contínuo. Sobre isso, fica meu agradecimento a uma recém conhecida, de poucos meses atrás, que tem sido de muita graça, não só em nossos diálogos, quanto pela insistência de que devo ter um espaço só meu.

Mesmo que ela não veja qualidades nas poesias que faz, como devorador de livros há tempos e um escritor com um pouco de aprendizado, a vejo como um pequeno diamante bruto, que precisa, apenas, ser lapidado. Assim, deixo meus agradecimentos a Barbara Prieto que de tanta insistencia me inspirou a divulgar esse espaço, que, até então, criei só para mim, e que também já leu algumas das prosas que serão expostas aqui.

Como dito, a idéia não é juntar multidões. Mas sim, bons leitores que sempre retornam para acompanhar as ficções, e, com sorte, tecer comentários após a leitura.

Cabe também deixar meus agradecimentos a uma flor que encontrei no asfalto, em, como dito por um amigo, uma das ruas mais feias da cidade de Araraquara: Karina Audi. Quanto a ela, fica meu desejo que possa acompanhar também minhas narrativas pelo simples prazer que meus textos podem despertar e um agradecimento por, desde já, ser tão especial.

O mundo de minhas narrativas não é tão belo quanto foi um dia. É podre e obscuro quanto o mundo que vemos lá fora. Um amigo muito próximo, Vinício dos Santos, definiu, certa vez, meu estilo como uma retórica da agressão. E sua afirmação não poderia estar mais correta.

A maneira como realizo um texto é pegando boa parte daquilo que me incomoda e brotando o mesmo sentimento no leitor. Seja pela violência das palavras ou por ato extremos, desses que só personagens literários tem a força de realizar.

Em toda minha produção, são os textos mais maduros que produzi. E que continuarão sendo produzidos a medida que surge a inspiração, a transpiração e meus olhos atentos sobre o mundo.

A arte é composta disso, uma doce imitação de nossos pesadelos mais profundos. De tristezas negras e amargas, mas travestidas de uma poesia dolorosa como os acordes de um blues.

Por fim, fica o pedido sincero para, caso tenha apreço por essas escrituras, que indique aos amigos e conhecidos. Quem sabe juntamos aqui um pequeno grupo de leitores, poetas e prosadores cujo prazer é, justamente, a literatura. Essa arte tão abstratada e ao mesmo tempo tão nítida.

Muito obrigado, e boa leitura,

Thiago Augusto Corrêa