quarta-feira, 22 de maio de 2013

A Garota Que Não Conhecia o Guia


Para Karina Audi


Marcaram o primeiro encontro nas vésperas das férias escolares. Quando recorda a história, não se lembra o que vestiu, tamanho o nervosismo. Lembra que se olhou uma última vez no espelho após ela tocar o interfone lhe dizendo: oi, sou eu. Frase que o fez sorrir pela maneira como ela se anunciava. Eu, quem?, pensou. Mas sabia que era a garota, não esperava mais ninguém.

Percebia que embora a sequência dos acontecimentos fosse evidente, não saberia descrevê-los por completo. Tudo que via era pequenos flashes: o caminho até a sorveteria em que brincou com o sobrenome dela, o mesmo de uma loja local. O fio de conversa que conseguiram manter durante todo o trajeto, não dando espaço ao silêncio esmagador. A conversa na sorveteria sobre filmes, literatura, seriados e todo o blá blá blá de um nerd que sabia o nome de toda a equipe do homem morcego e falas completas do primeiro Duro de Matar.

Ele gostava da maneira como ela lhe ouvia e, atenta aos fatos, pontuava suas opiniões em meio a suas frases repleta de referências. Frases que hoje lhe fazem pensar, deus, como ela não saiu correndo dali? Imagina a cena pelo olhos dela, lhe perguntando o que a fez permanecer ali.

Quando ela lhe disse, não, não li, em resposta à pergunta você já leu o Guia do Mochileiro das Galáxias?, ele soltou o primeiro olhar enviesado da noite. Era um simulacro incrédulo de raiva para fazê-la rir. Subiu seu tom de voz perguntando-lhe como não e versou por cinco minutos aproximados sobre como o livro de Douglas Adams poderia ser considerada a bíblia sagrada. 

A conversa prosseguiu após o sorvete e depois do aviso da dona do estabelecimento de que fechariam em quinze minutos. Foram caminhando até suas casas. Ao chegar na frente de seu prédio, hesitou. Perguntou se poderia acompanhá-la até sua casa. Em parte, prezando a segurança, em outra porque não gostaria de abandoná-la. Pediu que aguardasse um momento e subiu para seu apartamento. Distraiu-se no espelho, ajeitando um fio de cabelo que insistia em seu rosto. Prestes a trancar a porta, lembrou-se do porquê fora a casa. Foi até a estante, retirou um de seus livros com cuidado, colocando-o na mochila. E saiu.

Passaram a noite em claro conversando e trocando beijos. Amanhecia e, naquele mesmo dia, eles voltariam para suas cidades para as férias. Sem querer, guardavam uma surpresa um para o outro. Ela lhe deu uma foto, para você lembrar de mim. Ele, abrindo a mochila, retirou cuidadosamente seu exemplar do Guia do Mochileiro das Galáxias e entregou a ela. Para reparar esse terrível erro em sua conduta nerd, disse.

Se beijaram e se despediram. Tanto fazia se haveria sol ou chuva naquele dia.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Around The Clock



Mais uma manhã comum, de uma quarta feira comum, de uma reunião semanal costumeira para balanço da semana anterior e eventuais análises de casos problemáticos na empresa. 

Eram seis, em uma mesa circular, com seus cafés recém saídos da máquina de expresso e os rostos ainda projetados no breve adormecer da noite anterior. Mesmo que todos, com a exceção do chefe, tentassem esconder a sonolência com maquiagem ou roupas alinhadas.

Ainda atrelada aos seus pensamentos, Camila fitava o rosto do chefe sem discernir ao certo suas palavras, pronunciadas em uma cadência longa e em tom baixo que mais relaxava-a, aproximando-se da vontade de apoiar os braços e a cabeça ali mesmo na mesa, do que lhe despertava. Levantou-se para retirar mais uma xícara de café da máquina.

O barulho dos grãos sendo moídos pelo processador incomodaram o chefe que interrompeu a fala fazendo a mulher enrubescer. Ela lhe deu um sorriso com todos os dentes, como quem pede desculpa, e voltou para a mesa. Quando seu despertar aconteceu.

Sentada na cadeira ao seu lado, Luciana, sua colega, apoiou-se em uma das mãos, direcionando a cabeça para o chefe. Seu punho direito, até então escondido pela manga cumprida, se revelou. Fazendo os olhos de Camila brilharem.

Era feito de metal em entalhes dourados e prateados. Aro pequeno, delicado, que a fez lembrar doces de confeitaria que, além de saborosos, são um deleite aos olhos. Mas o que lhe deu um arrepio em todo corpo foi o nome estampado no centro do marcador.

Era o relógio que Camila desejava há meses mas que não podia comprar por causa da dívida sempre infinda dos cartões de créditos. E lá estava ele, brilhante, admirável, lindo, no pulso de outra mulher que não ela. 

Cada movimento de Luciana era acompanhado pelos olhos ternos de Camila. Estava apaixonada. Durante tanto tempo havia desejado o relógio, mas pela primeira vez o via a olhos nus e ele se revelava mais do que perfeito do que as imagens que via nas revistas ou nas lojas virtuais.

O tempo se arrastou na hora seguinte e Camila pouco prestou atenção na reunião. Pensava na mudança que sua vida teria ao tê-lo em seu pulso, via-se ganhando uma promoção, escolhendo roupas que combinassem com o adorno mas, ao voltar a realidade, sabia que ainda não seria aquele mês que poderia arriscar uma prestação a longo prazo.

Quando a reunião acabou, ela olhou para o relógio da colega como se despedisse de uma paixão platônica. Deu um longo suspiro e, ao olhar em seus pulsos, riu ao ver apenas uma fita vermelha presa em um deles.

Aproveitou a hora do almoço para descer ao centro da cidade. Olhou as lojas de roupas como de costume e, em uma relojoaria, se encantou com o mesmo relógio visto anteriormente. Ali, com o reflexo do vidro, parecia mais pálido. Se eu tivesse dinheiro, pensou. 

Ao retornar para o trabalho, parou na banca de camelô que visitava quase todos os dias. Ocupava uma longa parede de uma loja desativada e a variedade vasta ia desde filmes piratas, bijouterias, até óculos de sol e relógios de grandes marcas a preços módicos que o vendedor garantia a originalidade.

E ali o viu. Entre outras marcas, sua pulseira de metal em prata e dourado, aro pequeno como um doce bem confeitado. Parecia tão real, idêntico ao que ela viu no pulso da colega que, quando percebeu, já estava com ele nas mãos, posando para um pequeno espelho que o vendedor tinha na loja improvisada. Resolveu leva-lo por trinta e cinco reais.

Colocou-o no pulso como se trajasse uma das joias da rainha, nunca pareceu tão altiva no trabalho, nunca tão carinhosa em saudar a todos erguendo a mão para um rápido aceno. Desejava que todos observassem a nova conquista.

Mas Camila ainda sentia-se entristecida. Estava com o relógio há quatro horas e tudo estava igual. Ninguém lhe perguntara a respeito. No fim do expediente, o chefe, despedindo-se, perguntou sobre o adorno.

Sentiu outro arrepio com a mesma intensidade daquela da manhã. Era o momento de mostrar ao chefe o requinte,  beleza, e de como ela, elegante, merecia muito mais na empresa.

- É muito bonito sim – lhe disse – mas a Luciana não tem um igual?

Foi por pouco, mas seu sorriso quase se desfez.

- Tem sim, mas – e aproximou-se brevemente dele, diminuindo a voz – o dela é falso, desses comprados em camelô. - o chefe assentiu, lhe deu aceno e foi caminhando para o estacionamento.

Ela sabia que havia contado uma mentira. Mas era uma mentira tão pequena que não significava nada. Não haveria de significar. Foi Luciana que se atreveu a comprar o relógio antes dela. Essa era a verdade. E, pensava, aquela sonsa bem que mereceu

14 de Maio de 2013

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Austeriana (3): helicoidal

 


Leia: Austeriana (1): escritor, personagem, papel
Austeriana (2): o texto de Charlote

As folhas ainda estavam em minhas mãos enquanto olhava fixamente o papel em vez de encarar Charlote. Era minha maneira de refletir a respeito do que li sem que ela percebesse ativamente meus pensamentos. Embora a narrativa fosse centrada nela como pessoa e personagem, me reconheci em algumas linhas, calculando que esta era sua sensação ao se reconhecer nas minhas.

- Eu pareço assim tão, tão... – ela começou a rir e meneou a cabeça – idiota?

Mas me parecia mais do que isso. Talvez eu nunca tivesse compreendido totalmente como havia, naquele momento, a completude do autor, personagem, leitor. E de como as histórias poderiam se moldar de uma maneira que estes patamares, em tese separados, se tornassem um novelo enevoado.

- Normalmente, sim. Acho que tem a ver com a concepção de se sentir diferente por escrever. – ela mesma se atropelou nas palavras – eu sei o que vai dizer, nem todo mundo que escreve é um escritor, mas vou te considerar como um.

Depois de anos escrevendo, era como se eu não soubesse ainda o sentido total por trás das palavras. Não a busca sistemática por encontrar-se no texto ou buscar, a partir dele, uma razão universal, mas a motivação escondida nas escrituras. Ao menos de minhas narrativas.

Charlote continuava apreensiva. Procurei selecionar minhas palavras com cuidado.

- Você tem medo de ser uma personagem?

- Talvez. Acho que as lembranças tornam-se mais sensíveis com elas. Ou posso parecer exagerada, talvez tenha exagerado no texto também.

- Não. A equação muda de escritor para outro, mas o resultado é o mesmo. Projeção, imaginação, trabalho árduo. Se você dissecar o texto, a composição parece fácil. Mas são apenas personagens vivendo uma história, Charlote. Há quem sinta falta deles quando o final do livro se aproxima, porém, por mais que estas personagens me inspirem, continuam sendo personagens.

- ...

- Lhe falta sempre alguma coisa. A completude, o erro, o paladar. Falta a demência humana.

- E se forem um desses personagens românticos, eles não deveriam ser dementes também?

- Acho que se torna invariável. Admiro mais as personagens que os humanos por sua lineariedade. Atingem seus objetivos mesmo com grande dificuldade. São criadas para irem de um lado para outro em uma história e são bem sucedidas, enquanto na vida real tudo é mais falho. Gosto do entusiasmo das personagens.

- ...

- E parte da força de um escritor vem de uma superioridade de se achar no direito de conhecer suas personagens ou de saber compreender uma parcela da alma humana. Gosto de acreditar que te conheço, embora saiba que não. Mesmo que especule que conheço a personagem e que a admire, isso é um engano. O reflexo é ela, não você. Mas, às vezes, para o leitor, isso não é claro, por isso as personagens criam vida.

- E existe outra Charlote por aí, da mesma maneira que existo. Mas ela não sabe sobre mim.

- É um tanto metafísico, mas pode se pensar por aí. Mas eu dizia que nem sempre um texto demonstra suas intenções iniciais. A criação primordial do autor pode se modificar. Se você lesse um “eu te amo” em uma narrativa, poderia imaginar que fosse uma declaração apaixonada se essa for sua interpretação, ou talvez seja a tendência momentânea de seu entusiasmo. Outro, frustrado, poderia achar uma ironia. Metade da narrativa está escondida em quem lê.

Não havia mais o que lhe dizer a respeito. Era este um dos conceitos da própria composição literária e, somente quando me tornei uma personagem, pude compreender. A urgência de histórias que precisam ser despejadas no papel, o desespero que muitos o fazem e o mesmo desespero que estas palavras são devoradas.

- Não se preocupe com isso, Charlote. Você, como personagem, será confundida um milhão de vezes com outras pessoas. O reflexo não é funcional como um espelho. É, continuando nessa ideia de um jogo de luz e sombras, uma imagem à meia luz. Se reconhecer em uma personagem é o mesmo que caminhar em uma noite escura. Às vezes passam vultos por nós e, até sabermos se conhecemos ou não alguém que passa ao nosso lado, é necessário um prazo de análise e compreensão. Nem sempre a Charlote personagem vai ser você mesma. Vai se transmutar entre outras pessoas que vão jurar que a personagem nasceu para ela.

- Eu gosto da personagem como eu gosto de mim, de alguma maneira.

- Agradeço pela sua boa vontade. Você é muito gentil.

Charlote e eu conversaríamos sobre literatura mais algumas vezes. Mesmo que tentássemos evitar a ideia romântica, debruçaríamos sobre o argumento como se fosse um mistério. Sabíamos que, no fundo, autores não são tão imortais quanto suas obras. E talvez por isso desejássemos nos transformar também em personagens. Para, mesmo que de uma maneira ínfima, viver à beira da morte sem nunca perecer propriamente.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Austeriana (2): o texto de Charlote



Leia: Austeriana (1): escritor, personagem, papel

Sei o que ele deseja; Ver meu lado para lendo-me dizer que sempre soube de mim. Mas não posso lhe dar esse prazer. Não posso ser gentil se me incomoda reconhecer que ele parece dialogar mais comigo do que eu mesma.

Se conseguisse ler todos os textos sobre Charlote que ele escreveu, encontraria alguém menos parecida comigo? Afinal, sou mais eu ou mais ela?

Sinto como se cada vez que escrevesse tentasse retirar um pouco de minha alma. Tomando-me para si. Tendo-me em suas mãos. Não posso aceitar. É tão difícil saber quem sou para um estranho dizer que sou assim ou dessa maneira. Não posso.

Então, surge ele. Baixo, de rosto engraçado, com uma presunção tão grande quanto sua barriga. Mas ainda assim um escritor. Quando me conheceu escreveu para mim. Enquanto eu ainda não era aquela Charlote. Enquanto não era dividida ao meio como mágica, sendo Charlote viva com sangue correndo nas veias e Charlote personagem realizado. Ao menos ele explicou para mim dessa maneira.

E pediu-me para fazermos o inverso. Porque você não escreve o seu lado da história, me disse. Mas como posso pensar por você, escritor? Sentar em um canto sorvendo a vida, tomando café ou sorvete até uma idéia genial? Sempre escrevi para curar minha própria dor, não a sua.

O que você via quando me olhava é o mesmo que vê ao observar Charlote? Ou me ve como um mistério, desconfortável dentro de seu mundo? Ou uma garota a quem você pudesse salvar? Não sei realizar este exercício...

Recordo-me do dia em que caminhou ao meu lado narrando meus movimentos. Tentando demonstrar-me como, a partir de mim, transformava a realidade em ficção. Talvez ele quisesse saber-me como sabia a personagem. Mas, depois de tanto tempo, depois de tantos escritos, comecei a sentir falta daquelas histórias também.

Comecei a viver nelas as aventuras que eu, covarde, não consegui viver para mim. A ilusão de uma Charlote não alcançada era mais aventureira, mais bonita do que minha estima, mais concreta. Mostrando como eu poderia ser se não tivesse medo. Se não tivesse lágrimas. Demorei muito tempo após as leituras para voltar a mim mesma. A me reconhecer dentro de minha amargura, dentro de minha felicidade, do equilíbrio agridoce.

Talvez ele quisesse me conquistar com suas palavras. Mas com elas fez uma pessoa melhor que a Charlote de carne e osso. E o que devo fazer, portanto? O que ele espera desse desafio que nunca deveria ter aceitado. Me ver ainda submissa? Ainda menina? Alguém que lhe ponha em seu lugar? Não.

Gosto da maneira como ele escrever e, mesmo sabendo, reconhecendo minha alma. As frases que já completamos um do outro assustam. Terrível encontrar um semelhante que parece te duplicar, pensando como você, mesmo não te sendo.

Somos assim. Tivemos esses momentos de palavras escritas ou mudas que nos projetaram como heróis.  Mas se eu recriasse a história novamente alteraria os fatos.

Produziria minha versão do escritor, uma outra segunda Charlote e tudo ficaria mais confuso do que me parece. Dignos de uma potencial tragédia ou uma dessas cômicas comédias antigas de trocas de personagens por sua semelhança.

Devo desistir. Não pela falha, mas pela luta que seria longa demais. Uma outra versão da mesma história seria o nascimento de outro mundo. Estes criados tem que nos bastar. Devemos isso a eles.

22 de Abril de 2013

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Austeriana (1): escritor, personagem, papel



Olhei para Charlote tentando adivinhar seus pensamentos. Não que fosse necessário uma conversa para descobrir suas reflexões. Bastava ir até o computador, abrir uma tela em branco e dar vazão a minha própria versão de Charlote. Eu havia feito esse procedimento outras vezes e, agora com distanciamento, não consigo mais discernir quem era a mulher real da personagem que criei.

Em algumas vezes, ela leu meus escritos mencionando o quanto pareciam feitos por ela. Você tem um jeito que parece observar meus pensamentos, dizia. Sentia-me feliz pela conexão invisível, embora não houvesse uma resposta. Desejava acreditar que, de alguma maneira, tínhamos uma ligação que, em situações certas e ambientes controlados, seriamos capazes de finalizar a frase um do outro.

Quando sentia falta de Charlote, dedicava algumas narrativas a ela. Nada que ultrapassasse um estilo de ficção tradicional. Reprisava nossa história, inseria novos elementos, levando-nos, pelas palavras, a lugares que nunca fomos de verdade mas que, parte de mim, gostaria de ter ido.

Não que algumas dessas palavras me deem grande orgulho. Mais novo, menos maduro, escrevi para lhe machucar. Ainda tenho apreço pela potência da arte mais suas lágrimas me doeram. As vezes, Charlote é minha consultura. Ela escreve também e gosto de sua prosa. Ela diz que não.

- E se houvesse uma história em que uma personagem fosse testemunha de uma cena que não poderia ter visto, mas guardou segredo do que viu?

- Como assim? Uma dessas histórias carregadas de drama e sentimentalismo?

- É o que tenho medo que aconteça, Charlote. Mas pensei em algo mais visceral. Uma história tão vergonhosa ao ponto de que a pessoa nunca tivesse vontade, ou coragem, de contar a alguém.

- Escondendo uma humilhação de alguém para si?

- Exato. Mas isso machuca a personagem. Ela não consegue mais viver com aquele segredo de saber que tudo, de alguma maneira, foi vivido como uma mentira. Mesmo que não seja a dela. Ela começa a pensar que se tivesse interferido na ação, os planos seriam diferentes, mais verdadeiros.

- Hum – e faz a mesma expressão que faço, de deixar o olhar no horizonte para refletir – pode ser possível.

Mas dessa vez queria propor a Charlote uma ideia diferente. Que ela escreve sobre mim. Ser sua personagem, cansado de ser um autor.

- Eu queria ser seu personagem, dessa vez. Você recontaria o que quisesse, ou adicionasse a essência que achar. Confio na sua capacidade de escrever e, mais ainda, confio que sabe minha essência, nem que um pouco dela.

- Acho arriscado.

- Porque? Que mal haveria de haver?

- Justamente o mal. E se eu escrevesse o que você não fosse gostar?

- É sua visão da minha. Se te fiz minha personagem, agora se faça de autora. Se um dia foi minha musa, vamos trocar de planos. Realizar uma história as avessas. Você escreverá sobre um escritor que escrever sobre uma Charlote que, por coincidencia, é você mesma.

- E como diferencia-las? Como me diferenciar? Se você diz que quando escreveu sobre mim se confundiu e hoje não sabe mais o que é eu de carne viva e o eu de papel, como não confudir? Se metade dessas histórias foram inventadas?

- A diferença é que você, a Charlote real, poderá criar também a Charlote da ficção.

- Você está confundindo minha cabeça.

- Eu sei, mas você adora isso.

Ela sorri.

- Eu quero ver seu lado, Charlote. Sei que te tomei muitas vezes. Agora é sua vez de quebrar a quarta parede. Escrever sobre mim. Me dê um novo nome, uma personalidade além da tradicional. Quero ver como você me vê além de minhas palavras e impressões. Eu nunca pude realmente estar dentro de ti, de qualquer maneira, não?

- ...

- Não me de seu silêncio como resposta. É apenas um exercício como você fez antes. Não vai causar mal nenhum. Sei disso.

- eu ...

- Entendo a relutância. Mas me dê esse prazer de ser sua personagem, Charlote. Me ver pelo seus olhos será curioso.

- Tudo bem - relutante - aceito a proposta.

23 de Março de 2013

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Palavras de Minhas Palavras de Adeus



Escritores tem um fetiche não declarado por cadernos, cadernetas ou qualquer outro conjunto de papéis que pode ser rabiscado. Uma fantasia literária que surge da brancura de um papel que será preenchido com possíveis idéias.

Tenho cadernos de todos os tipos em casa e, sempre que vou a papelaria, me vejo admirando-os. Mesmo que tente organiza-los, na falta de tê-los a mão o tempo todo, qualquer papel é útil para uma anotação.

Quando desejo jogar um antigo caderno escolar fora, tenho de folhea-lo com cuidado para saber se por acaso não deixei um texto, um poema, uma frase que achei interessante anotar e que seria material para contos natimortos.

Guardo rascunhos rasgados de cadernos diversos, de maneira desordenada, na esperança de um dia encontrar uma ideia genial ou um bom texto perdido.

Tenho um desses de uma matéria, com cem páginas, e uma paisagem na capa e a frase No Stress. Contas, listas de mercado, anotações gerais e idéias. Nele reencontrei uma canção que há muito tempo não me lembrava. E utilizo a palavra canção com precisão, pois, ela foi feita dessa maneira. Com versos mais leves para ser cantados, com uma urgência melódica, sem perder a profundidade mas, ainda assim, cadenciada com rimas.

A temporalidade me deixa distante de sua criação mas recordo-me da noite depressiva e triste pela discussão com alguns amigos, motivo que me fez rabiscar palavras em meados de dois mil e seis ou sete.

Empunhando o violão fiz alguns acordes e comecei a cantar a esmo. Mas escrever para amigos não é tão pungente quanto um amor, me pareceu. Projetei minha dor em outra história criada a partir do lápis. Sim, chega a hora de avisar que estou indo embora antes do fim.

Essa primeira frase me comoveu ao ponto de me fazer chorar. Anotei a base que tinha composto, em Sol, Lá Menor e Fá, e cantei-a milhares de vezes até que outros versos surgissem.

Lembro-me que tentei ser tão pungente e poético quanto Nando Reis, um compositor que admiro. De modo que, duas horas depois, eu sentia-me cansado, triste e com a sensação de ter finalizado uma canção admirável. Poderia ser meu gigante egocentrismo falando por mim, mas o produto final tinha me deixado satisfeito, fazendo valer o sentimento que emulei por duas horas e que me deixou mais depressivo do que quando comecei. 

Tenho poucas canções. Pelo gosto de tocar violão, as vezes faço letras em cima de melodias que invento por diversão ou desafio. Assim como já musiquei poemas de amigos. Dentre esse pequeno cancioneiro tímido a força desta canção carrega uma verdade tão profunda que não sei como saiu de mim. 

E era essa a história que queria lhes contar antes de apresentá-la, ainda que não integralmente pela falta da melodia.


Minhas Palavras de Adeus

Sim,. chega a hora de lhe avisar
que estou indo embora antes do fim.
Assim desapareço de repente
enquanto você, sutilmente, saia de meu coração.

Não, não vai haver perdão nem volta.
Estou agora trancando a porta
e lá fora o sol vai me iluminar.

Me dar a felicidade que se foi um dia.
Seu sorriso que era minha alegria
agora é triste como sombra que nunca vai passar.

Sei quanto bonita foi a nossa história.
Trago o mais belo dentro da memória
mas porque você teve de me deixar assim?

Ô. Diz para mim?
Diz.

Calma. Sei que os desejos mais belos da alma
devem estar além dessa construção
que hoje se arruinou.

Foi você quem me guiou na sua estrada.
E refazendo a sua jornada 
deixou a mim e nossas malas para trás.

Parto. Vestido um desejo quase morto.
Lembrando dos seus olhos que me diziam
que nunca fui-lhe um porto.

Nossa foto antiga e desbotada
ilustra um amor da estação passada
e a sensação de que ainda quero mais.

Guarde seus nobres planos com seus triste enganos
que daqui há muitos anos você vai lembrar
de mim quando chorar.

Ah, minhas palavras de despedida
são o meio dessa partida
onde vou embora, embora não queira
lhe dizer adeus
e te abandonar.

terça-feira, 9 de abril de 2013

T. I.



Duas horas da madrugada de um domingo. A tampa do computador portátil acaba de quebrar, impedindo que a tela fique aberta. Duas opções: desistir ou apoia-lo na parede atrás da escrivaninha. Nível de conforto para digitar com mãos esticadas e corpo arqueado: zero.

Segunda – Feira. Na busca do navegador, lojas de computadores na cidade. A lista é curta. Não, não trabalhamos com notebook ou somente com formatação. Penso em desistir. Técnicos de computadores são todos filhos da puta, sem exceção.

Levar um computador para consertar é sempre uma experiência traumática. Os técnicos reconhecem que seu conhecimento é maior que o do cliente e fazem questão de produzir um abismo de superioridade, normalmente, tratando qualquer defeito como um pequeno problema simples. Uma maneira de dizer que você, cliente, é um estúpido por não saber como resolver.

Há dois anos tive o mesmo problema da tampa quebrada. Mas, em outra cidade, fui até uma loja de informática que já conhecia. Talvez fosse mais fácil ligar para esta loja, encomendar a peça e pedir a montagem em um final de semana próximo. Peguei o telefone e novamente consultei a busca online.

Olá, sou um cliente da loja e tive um problema com a tampa do meu notebook. Da outra vez vocês que encomendaram a peça para mim.

- Me informe seu nome.

Informo soletrando as letras do sobrenome. Vejo-o no telefone rindo de mim. São todos desgraçados.

- Localizei o cadastro. É um notebook Dell, modelo Latitude?

- Sim, exatamente. Precisaria encomendar outra tampa pois aconteceu o mesmo problema.

- Perfeito. Traga aqui para verificarmos e encomendamos.

A princípio, imaginei que o vendedor tivesse se expressado mal. Perguntei-lhe novamente o que tinha dito, mas ele repetiu as mesmas palavras.

- Como assim?

- Precisamos ver o computador antes.

A mesma sensação de derrota de uma hora atrás tinha me atingido. Eu mandaria-o a merda se isso adiantasse.

- Mas não estou te dizendo o problema dele? É encomendar a mesma peça e me ligar quando chegar para que efetuem a troca.

- É uma norma da empresa averiguar o computador antes de qualquer pedido.

- ...

- Senhor?

- ... bom.

Eu teria desligado o telefone se tivesse uma opção. Tentei argumentar, localizando seu bom senso.

- Eu não posso ficar sem meu computador, é o único que tenho e trabalho com ele. Tenho uma tese para fazer – pensei em gritar diversas vezes as mesmas frases na esperança que o protocolo mudasse.

Emtão, há alguns dias o pc está aleijado, entortando-me junto pela posição ruim. Vou para a cama, pego um caderno e começo a rabiscar um conto manualmente. Três parágrafos e as mãos latejam. Insisto e a caligrafia parece um bêbado no meio fio. Desde quando desaprendi a escrever com minha própria letra? Penso no técnico, na loja, nem repito os xingamentos pois já se tornaram um mantra.

Desisto da cursiva e volto ao computador. Posiciono a cadeira no melhor ângulo possível mas as costas gritam debaixo da pele. Mais um pouco, peço, aguente mais alguns dias. Mas estou impassível. Amanhã, prometi a mim mesmo, procurar outras lojas do ramo.

Sei que o computador ficará assim alguns meses até que eu tome uma decisão. Enquanto isso, vou rabiscando bobagens com raiva pela situação ruim de escrever um texto sem o local adequado. Tudo bem, no final de semana eu levarei na loja. Talvez eu veja um novo computador reserva. Um desses mais baratos para emergências. Talvez, eu gostaria de ser um milionário excêntrico que, a cada defeito do computador, jogasse-o no chão com um pouco de alcool e deixasse-o queimando enquanto gritasse frases incentivadoras como queime, desgraçado, queime. Para, em seguida, ligar outro novo em folha.

Enquanto isso, meu amigo manco e eu produzimos. Ainda que em letras tortas.

03 de Abril de 2013

sábado, 16 de março de 2013

Histórias de Sarjeta




Ana, a locomotiva

Nunca bati em uma mulher. Exceto Ana. Duas vezes. Ela possuía a - péssima - mania de tomar pico. Na primeira vez que vi ela no chão, rindo abobalhada, achei que era uma overdose. Lhe dei um tapa para que tentasse articular alguma palavra. Na segunda vez, outro tapa, mas era mesmo overdose. O braço começou a ficar inchado e tive de levá-la ao hospital.

Dias depois, fui visitá-la. Olheiras no rosto, uma faixa no braço, morfina - ou algo que ela me disse ser morfina - na veia. "Trouxe cigarros?", me perguntou. "Sua idiota, você quase morreu", pensei, mas respondi apenas não.

Havia um rapaz com Ana no quarto. Tomavam pico juntos, não no quarto, na vida, esclarecendo. Nunca me senti tão incomodado em uma situação. Ela e ele, como se feitos um para o outro. Ana gostava de mim. Eu gostava de Ana. Mas ela era demais. Com Ana, eu precisava ser selvagem, chutar animais e latas pela rua.

Mas sou só um escritor.


Sujinha

Estávamos no terceiro encontro e só tínhamos dinheiro para a condução. O atraso do ônibus e uma chuva torrencial que surgiu me fez convidá-la para minha casa. Após uma toalha para se secar, ela pediu para tomar um banho quente, "não quero ficar resfriada por causa da chuva". Não encontrei maneira de dizer não.

Quinze minutos depois, saiu com um short e uma de minhas camisetas, roupas quase sujas, espalhadas por lá. Fui ao banheiro urinar. Então, eu vi. Era como as três caravelas de Cabral, uma ao lado da outra, boiando no vaso, em destaque.

Voltei à sala. "Vamos beber", me disse. "Não bebo", respondi. "Como você é careta", falou. "Pois é", respondi novamente.

E seu corpo semi nu cobrindo-me enquanto desabotoava seu sutiã não foi o suficiente para retirar aquela imagem de minha cabeça. Eram três, as caravelas de Cabral, boiavam no mar de Portugal.

A Rainha 

Dez anos após a formatura, Carolina não era mais a beleza que guardei na memória platônica. Talvez fora esse o motivo que a fez sair comigo.

Estive naquele restaurante - que custou, aproximadamente, cinco de minhas refeições normais - pela nostalgia e a vontade sexual de, sob os lençóis, reconhecer que mesmo tardiamente a rainha do baile de formatura estava em minha cama.

Mas ela estava feia de dar dó.

16 de Março de 2013

sexta-feira, 15 de março de 2013

O nome de Isaac Asimov é onipresente ao se falar de ficção científica. Reconheço alguns de seus títulos na livraria, principalmente o que contam a história chamada de Fundação, uma de suas melhores narrativas que, dizem meus amigos, foi publicada no país de maneira contrária ao programado. Por isso, além da trilogia, é necessário ler mais alguns livros antes e depois para conhecer toda a história

Comprei um livro de ensaios do autor chamado Do Início ao Fim, para começar os estudos para minha monografia. Escolhi analisar O Jogo do Exterminador, de Orson Scott Card, e realizar uma análise geral de sua história. O futuro de uma suposta Terra invadida por alienígenas, a dominação do governo com regras rígidas a ser cumpridas, e a relação entre povos e a falta de comunicação entre eles que gera o choque mais definitivo na história.

Escolhi começar com os ensaios de Asimov por ser um escritor que todos afirmam ser excelente prosador em qualquer assunto que caia em sua mão. Nesse livro em questão, o autor reúne diversos ensaios dispersos tendo como tema central a evolução da narração científica.

O prefácio curto é uma apresentação deliciosa. Asimov explica sua compulsão em escrever, enumerando os motivos que o levam a refletir sobre assuntos diversos. Conversa diretamente com o leitor novato dizendo que seu estilo é composto por uma camada de cordialidade e, caso o leitor não goste, que pare de ler o livro. Como escritor, ele prefere perder um lucro da venda do livro do que entristecer um leitor. Assim, brevemente, expõe sua relação com seus leitores de maneira íntima.

O livro é divido em três partes. Passado. Presente. Futuro.

No primeiro artigo de Passado, Asimov relembra a personagem Cirrano de Bergerac, afirmando que a personal real que existiu era tão excitante quanto a personagem de Rostand. Mas os livros a respeito deixaram de lado um elemento importante em sua história. Bergerac seria um dos primeiros a escrever uma história de ficção científica, que foi descoberta após sua morte e, assim, publicada na íntegra.
Era uma época antes de Newton, antes de postulações e, em seu romance, o autor descreve maneira de se chegar a lua. Seis delas sao absurdas, talvez conveniente com uma época em que nada se sabia, além de acreditar que entre o céu e a lua existia correntes de ar. Porém, a sétima questão, grifa Asimov propunha colocar em um veículo foguetes. Sem saber, Bergerac compreendeu por intuição a força que um foguete promoveria e que poderia chegar a lua.

O prmeiro capitulo é só uma pequena ponderação, mas traça com certo interesse o começo de uma jornada na ficção científica.


segunda-feira, 11 de março de 2013

Café Instantâneo



Toda quinta – feira, e em nenhum outro dia, venho tomar café da manhã nessa padaria. Sou um dos primeiros clientes do dia, de modo que já estou instalado em minha mesa preferida quando a vejo atravessar a rua rumo ao local. Normalmente, a espero para pedir um café. Como se em silêncio, e em seus lugares, tomássemos em companhia mútua.

Usa cabelos presos de uma maneira que pequenos fios caiam na frente quanto atrás dos ombros. Sua cor preferida é azul, sempre a vejo com adornos ou roupas dessa cor. Ou pode ser um sistema, utilizar azul todas as quintas-feira. Recomendação do horóscopo, da televisão, de quem quer que seja.

Senta-se de maneira perfeita, sem arquear as costas. Na cadeira da frente deixa a bolsa. Deduzo que não espera ninguém. Quando tira o casado revela uma roupa sem mangas que deixa o braço nú. Enquanto se movimenta para abrir o jornal vejo o movimento de seus músculos. É magra, mais baixa que minha estatura de um metro e setenta e cinco. Não consigo não ter simpatia por essa mulher.

Se por ventura nossos olhos cruzam, trocamos cordialidades. Digo Olá e recebo seu sorriso de voltar. Somos cúmplices nesse café da manhã. Há semanas que observo em seu gesto uma angústia maior que a felicidade. Quando chega o café expresso voltamos a complentar a si mesmos. Ainda que meu pensamento permaneça no sorriso. Deixaria minha vida naquelas mãos em um suspiro.

Está com sapatilhas vermelhas, jeans bem acentuado ao corpo e blusa azul. Ela olha para mim e ergo minha xícara desejando saúde. Tenho a impressão que ela me lembra alguém que já esqueci. Por isso a sensação de empatia. A moça do café me lembra de uma mensagem dentro de uma garrafa que precisa ser decifrada.

Enquanto escrevo estas anotações, ela me observa. Os olhos parecem pares dos meus. Ela é uma figura que, apenas por algumas horas, deixa meu norte mais para leste. Me apaixono por ela todas as quintas pela manhã e, a tarde, o mundo encontra novamente o equilíbrio. 

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Perpendiculares



Em 2003, perdi um amor ou ele me perdia. Faço esta afirmação pelo fato dela ser um ponto de partida. Anos depois, recordei este fato em um texto de qualidade literária duvidosa com certo sentimento genuíno.

Nele expunha duas situações em uma mesma linha de raciocínio. A história do amor perdido era uma exemplificação para explicar uma tese.

Não me recordo em que momento decidi desistir daquele amor. Talvez tenha pensado em prós e contras, feito uma lista careta e, matematicamente, escolhido romper os laços. O elemento mais provável, porém, foi que medi meu sofrimento em relação ao amor e o resultado não foi positivo. Preferi sair ferido com honra em uma batalha perdida do que lutar por algo que eu não conseguiria vencer. A história da vida de Sun Tzu.

A narrativa em questão, do texto sem qualidades, iniciava-se com uma afirmação. A derrota dita com coragem: eu abdico. Mais do que lavar as mãos, eu assumia o retorno dos soltados a terra natal. Nada havia a fazer exceto deixar as mãos abertas, como chagas, para que o sangue – ou o que estive dentro de mim, na época – escorresse.

O paralelo era estabelecido entre a história de amor quebrada com outra história que tinham como relação a desistência. Na época, a idéia parecia interessante, hoje falta-me a lembrança do que me motivou a escrever de fato. Porém, sempre ao me recordar de um fracasso, lembro-me do texto e de suas correlações. Uma linha de falhas e desistências que se formam, como um quadro, para de vez em quando, admirar e se incomodar, como diria Leminski, como se um homem com uma dor fosse melhor do que se é.

Recentemente tenho escrito indiretamente sobre envelhecimento e maturidade. Talvez por estar em transições como estas. O curioso de escrever é poder, após um tempo, olhar para suas narrativas com a sensação de que ganharam vida própria. Ao mesmo tempo que, indiretamente, elas acompanham as mudanças que direcionei minha vida. Os reflexos no papel me lembram de história na vida real.

Com mais idade compreendi que não há erro na derrota. A perda é um equilíbrio da vítória. Com essa afirmação esbarro no senso comum, mas é inevitável, é um bom raciocínio.

Assumir falhas não me fazem diminuto. Me deixam espiritualmente com o prazer de ser humano. Fracassar de milhões de maneiras diferentes. Chorar mesmo que no escuro. Mesmo que no chuveiro sentado no chão soluçando o mais silenciosamente possível para não ferir minha masculinidade que acredita que homens não choram.

Então, mais uma vez me vi diante de minha vida e suas situações. Como se tivesse olhares ansiosos aguardando minhas decisões. Cheguei a imaginar uma luz sobre minha cabeça, fazendo-me transpirar mais que o normal, mas era somente uma cena. Um desvio involuntário pelo medo de afirmar que novamente eu abdicava. Abdicava das histórias, declinava qualquer acontecimento futuro.

Não há alegria na velocidade se provoca grilhões. Diante disso, eu abdiquei  Com a sensação de um traço bem delineado. De um trabalho bem feito, se posso menear minha conduta como um trabalho propriamente. Não digo que tenho as mãos atadas. Elas estão livres. É por isso mesmo que abdiquei. Dando mais um passo, outro seguimento, as histórias de minhas desistências. Livre e sorrindo por dentro. Minha fidelidade ainda mantinha-se em mim.

28 de fevereiro de 2013

sábado, 23 de fevereiro de 2013

O Velho



Quando o cachorro vira lata do velho Johnson foi encontrado enforcado em uma das árvores da pequena cidade, ele retirou da parede o velho trabuco de seu avô e foi a casa mais próxima, a procura de pólvora para armá-lo.

Fundador da cidade de Maria das Graças, o velho nunca teve nenhum inimigo. Há muito tempo tinha se afastado da parte americana da família que fincou-se no país como escravocratas ricos na época da colonização. A única herança que mantinha de sua origem, além da arma, era um sotaque puxado que os quase setenta anos de brasilidade não retiraram de sua língua.

Dizem que Johnson saiu de casa com as mesmas roupas surradas que usava cotidianamente. Com a arma empunhada na mão direita, dizia aos moradores que pegaria o culpado, soltando palavras agressivas a, mais ou menos, sete ou seis palavras.

Conhecido por ser um homem fechado, o ancião chorou ajoelhado ao ver a figura canina com a corda de varal no pescoço, repleta de nós que não conhecia e levemente movimentando-se com o vento.

Enquanto curiosos passavam no local, um dos moradores acionou a polícia local que, além de dar um leve assobio ao ver o cão e fazer anotações, não pode fazer muito até dias depois quando Johnson, sujo e com marcas de sangue na roupa, se entregou a polícia após matar o jovem que matara seu animal.

Com o falecimento da esposa, o velho tornou-se recluso da própria cidade que fundou. O que aumentava o status de figura lendária em Maria das Graças. Contam que o cão foi encontrado dias depois do falecimento da esposa. De luto, de um naco de lanche ao animal e se apegou.

Durante aproximadamente seis anos aquele cachorro foi o companheiro de Johnson. Ele tinha a certeza de que seria enterrado pelo animal, de alguma maneira. Mas estava amarrado à arvore enquanto, em prantos, o velho lembrava que a ração deixada no pequeno prato de metal pela manhã estava intocada.

Johnson não hesitou em se entregar a polícia. Detalhou ao delegado os pormenores de sua ação que se consistiu em, ao falhar da pólvora no trabuco, virar o instrumento ao contrário e, com a força quase septuagenária de alguém que perde sua única ligação sensível com outro ser, arremeter algumas vezes, que não soube precisar, na cabeça de Jonas Bezerra, um dos poucos jovens do local que, por ter ido a capital três vezes, sentia-se um cosmopolita.

Jonas nunca foi ouvido pelo delegado. Dissera ao velho, minutos antes de morrer, que tentou expor sua valentia aos amigos. A supremacia descomunal perante outro animal, o cão, dócil e indefeso. Conforme realizava a ação, o grupo de quatro amigos sentiu-se acuado, principalmente quando, ainda com as cordas nas mãos, ele ameaçou o menor do bando, enlaçando o fio em seu pescoço.

A morte do cachorro seguida pela de Jonas foi o primeiro e segundo escândalo que a cidade assistiu. Foi a passagem do deslumbramento da inocência para a consciência de que todo ser humano está predisposto a fazer o mal, bem como, por amor aos seus entes, capazes de romper as leis mais cristãs. O cachorro, Jonas e o velho eram início, meio e fim de um mesmo ciclo. Se tornaram, com o passar do tempo, não só uma espécie de história lendária, e o princípio violento da cidade, como uma fábula moral que ia além da idéia agressão que gera agressão.

Embora tentassem os conservadores, o fundador da cidade nunca conseguiu ser odiado. Mas também não fora perdoado. Em sua homenagem, Maria das Graças ganhou no século seguinte o seu nome. Registrado por um prefeito que, envergonhado de não falar inglês e não saber soletrar o nome Johnson, batizou a cidade como Americano, colocando a foto do velho, uma das únicas encontradas em sua casa, em uma ampliação mal feita em na sede da prefeitura.

19 de dezembro de 2012

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Lar




Deixei a frase solta no meio da mesa da escrivaninha. Quero me separar. Chegando do trabalho, minha esposa me procuro. Eu estava em silêncio no quintal mas ouvia sua voz ecoando pelos cômodos.

No escritório, a tela em branco com o cursor piscando após a frase. Limpa, livre, em destaque no monitor. Ela veio voando pelo corredor, a esposa. Olhos chorosos. Eu disse:

Aldir Blanc e João Bosco, Incompatibilidade de Gênios – sabendo que havia deixado a frase na tela para desenvolver uma ideia que me surgiu ouvindo uma versão de Caetano. Um homem que anseia terminar uma relação. Estava no quintal para pensar se o argumento tinha enredo.

Sou casado há um ano e meio, namorei por quatro, portanto, há quase seis anos que Fernanda me conhece. Ainda não se acostumou a ver minhas frases jogadas pela casa louvando musas inexistências, desconstruindo histórias sadias, maldizendo gerações anteriores de família que minha ideia inventara.

Parte de meu primeiro aprendizado com a leitura, a literatura graúda, foi com romances policiais. As narrativas noir com detetives na margem entre a moral e a corrupção e mulheres mais fatais que uma caixa de dinamite. O resultado é que, sempre que posso, descrevo nádegas em meus textos. É um vício bobo, para me fazer rir. Normalmente no corte final retiro a bunda dissonante por não caber no texto. Mas Nanda sempre me olha de esguelha quando, ao ler as narrativas de antemão, encontrar minhas bundas rondando um falso desejo.

São apenas nádegas – digo a ela – de ninguém específico – nádegas são expressivas, eu penso – não descrevo as suas porque são só minhas – ela sorri com o elogio despudorado. Seis anos de relacionamento e ela ainda imagina que eu possa incorporar um de meus personagens. Decidida, de uma hora para outra, deixa-la. E, pior, avisando-a de uma maneira brusca, insensível e irritantemente cênica. Gostaria de brincar dizendo que, se eu realmente a abandonasse, utilizaria a tática de sair para comprar cigarros. Mas ela provavelmente se irritaria e ficaria emburrada no sofá o resto da noite.

Levanto da cadeira e seguro suas mãos. Ela precisa desse contado. Ela sabe que tudo que há dentro daquele escritório é material de trabalho. Lá sou um homem inescrupuloso  um imoral, um assassino, um pervertido, um monge, uma mulher, uma mulher devassa com nádegas que param o transito, uma criança que vende trocados no sinal, o gay enrustido que só descobre aos quarenta que se engano a vida toda e tem uma epifania.

Mas ela precisa de uma confirmação.

Aldir Blanc e João Bosco, Incompatibilidade de Gênios. Estava ouvindo essa música ontem no disco do Caetano, não se lembra? – Ela precisa saber que aquelas palavras estão dentro do campo da ficção – isso me deu a ideia de um homem que quer deixar a esposa e começa um relato assim, sem rodeios, agressivo.

Os olhos voltam ao normal. Ela sabe. Ela se lembra. Mas o impacto causou susto. Por um lado, é positivo. Significa que o conto tem potencial. Resta-me desenvolve-lo por completo. Então, ela me dá um beijo na boca, me dá as costas e vai para a cozinha.

Odeio Caetano – me diz, de longe.

Enquanto aumento a voz, cantando você me deixa a rua deserta, quando atravessa e não olha para trás. E a ouço sorrindo.

29 de janeiro de 2013

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Ternura




Olhei em seus olhos amendoados. Uma pequena lágrima se formou nos meus. “Sinta-se beijada”, disse a ela de maneira tão terna e calma que minha voz falhou na última sílaba. Nossa respiração cadenciada.

O perfume de pêssego irradiava no ar quando ela, perceptivelmente, parecia nervosa. “Me beije, então”, me pediu, quase cerrando os olhos. Dei um passo para trás. Nossas vidas em separação.

Ela chorou na estação derradeira. Entreguei o embrulho de alegrias, risos, festas e pedaços de bolo de chocolate. Era tudo que restava.

Aproximei-me novamente. Toquei seu rosto com a face das mãos. Inclinei a cabeça na sua. O hálito não era doce. “Eu só lhe desejo o melhor. Não importa onde eu estiver. Daquela estrela cintilante lá do céu eu estarei sorrindo”. Sua lágrima escorreu em minha mão. Beijei seu rosto para sentir o gosto. Lágrima de sal.

Segundos que deram silêncio. Meus olhos nos seus aprisionados. O relógio a nossa frente movimentou seus ponteiros. Meus olhos nos seus repousados. “Mande notícias”, falei. “Pode deixar”, mentiu.

Soltou-se o nó de nós. Dois em lágrimas. Coração aos berros. Demos as mãos apertando-as com força. Deixamo-as se desencontrarem. Coração aos pulos.

“Eu te amo”, lhe falei. Com a alma de lágrimas puras. “Eu também te amo”, ela tinha aprendido, então. Tentei sorrir. E as flores, e os barcos, e os cais, foram distanciando, um do outro, um de outro, desatados. Minha vista cansada de esperança. Ela ao longe. Horizonte.

29 de janeiro de 2013