quarta-feira, 17 de abril de 2013

Austeriana (1): escritor, personagem, papel



Olhei para Charlote tentando adivinhar seus pensamentos. Não que fosse necessário uma conversa para descobrir suas reflexões. Bastava ir até o computador, abrir uma tela em branco e dar vazão a minha própria versão de Charlote. Eu havia feito esse procedimento outras vezes e, agora com distanciamento, não consigo mais discernir quem era a mulher real da personagem que criei.

Em algumas vezes, ela leu meus escritos mencionando o quanto pareciam feitos por ela. Você tem um jeito que parece observar meus pensamentos, dizia. Sentia-me feliz pela conexão invisível, embora não houvesse uma resposta. Desejava acreditar que, de alguma maneira, tínhamos uma ligação que, em situações certas e ambientes controlados, seriamos capazes de finalizar a frase um do outro.

Quando sentia falta de Charlote, dedicava algumas narrativas a ela. Nada que ultrapassasse um estilo de ficção tradicional. Reprisava nossa história, inseria novos elementos, levando-nos, pelas palavras, a lugares que nunca fomos de verdade mas que, parte de mim, gostaria de ter ido.

Não que algumas dessas palavras me deem grande orgulho. Mais novo, menos maduro, escrevi para lhe machucar. Ainda tenho apreço pela potência da arte mais suas lágrimas me doeram. As vezes, Charlote é minha consultura. Ela escreve também e gosto de sua prosa. Ela diz que não.

- E se houvesse uma história em que uma personagem fosse testemunha de uma cena que não poderia ter visto, mas guardou segredo do que viu?

- Como assim? Uma dessas histórias carregadas de drama e sentimentalismo?

- É o que tenho medo que aconteça, Charlote. Mas pensei em algo mais visceral. Uma história tão vergonhosa ao ponto de que a pessoa nunca tivesse vontade, ou coragem, de contar a alguém.

- Escondendo uma humilhação de alguém para si?

- Exato. Mas isso machuca a personagem. Ela não consegue mais viver com aquele segredo de saber que tudo, de alguma maneira, foi vivido como uma mentira. Mesmo que não seja a dela. Ela começa a pensar que se tivesse interferido na ação, os planos seriam diferentes, mais verdadeiros.

- Hum – e faz a mesma expressão que faço, de deixar o olhar no horizonte para refletir – pode ser possível.

Mas dessa vez queria propor a Charlote uma ideia diferente. Que ela escreve sobre mim. Ser sua personagem, cansado de ser um autor.

- Eu queria ser seu personagem, dessa vez. Você recontaria o que quisesse, ou adicionasse a essência que achar. Confio na sua capacidade de escrever e, mais ainda, confio que sabe minha essência, nem que um pouco dela.

- Acho arriscado.

- Porque? Que mal haveria de haver?

- Justamente o mal. E se eu escrevesse o que você não fosse gostar?

- É sua visão da minha. Se te fiz minha personagem, agora se faça de autora. Se um dia foi minha musa, vamos trocar de planos. Realizar uma história as avessas. Você escreverá sobre um escritor que escrever sobre uma Charlote que, por coincidencia, é você mesma.

- E como diferencia-las? Como me diferenciar? Se você diz que quando escreveu sobre mim se confundiu e hoje não sabe mais o que é eu de carne viva e o eu de papel, como não confudir? Se metade dessas histórias foram inventadas?

- A diferença é que você, a Charlote real, poderá criar também a Charlote da ficção.

- Você está confundindo minha cabeça.

- Eu sei, mas você adora isso.

Ela sorri.

- Eu quero ver seu lado, Charlote. Sei que te tomei muitas vezes. Agora é sua vez de quebrar a quarta parede. Escrever sobre mim. Me dê um novo nome, uma personalidade além da tradicional. Quero ver como você me vê além de minhas palavras e impressões. Eu nunca pude realmente estar dentro de ti, de qualquer maneira, não?

- ...

- Não me de seu silêncio como resposta. É apenas um exercício como você fez antes. Não vai causar mal nenhum. Sei disso.

- eu ...

- Entendo a relutância. Mas me dê esse prazer de ser sua personagem, Charlote. Me ver pelo seus olhos será curioso.

- Tudo bem - relutante - aceito a proposta.

23 de Março de 2013

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